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21/11/2024
A Cura. A arte também cura.
Uma das maiores preocupações do ser humano nos últimos 2500 anos se voltou para a busca da cura da alma e do corpo. Podemos encontrar o termo latino cura sui como uma das primeiras referências para o cuidar de si. Ao longo da história, várias buscas e o desenvolvimento de terapias foram realizadas.
Vou apenas dar algumas pinceladas sobre a questão da Cura em Freud sem me aprofundar. O que me interessa nesse escrito é discutir o artigo de Winnicott sobre A Cura. Destrinchá-lo com garfo e faca de maneira que se torne palatável e possa ser apreciado em seus detalhes mais insignificantes. Gosto do método de leitura usado por Thomas Ogden, e vou tentar me apropriar dele, ao meu modo.
Na Psicanálise fundada por Freud, a teoria se assenta no contato com a neurose, no sujeito em luta com conflitos pulsionais e na batalha para manter o reprimido, reprimido. Curar para Freud implica em abstinência, em aceitação e confrontação com a realidade estabelecida, uma realidade a priori.
É interessante observar e salientar que as questões relacionadas à cura, às transformações possibilitadas pela análise, são problemas que permeiam a obra de Freud desde o “Projeto” de 1896, perpassando por vários de seus artigos.
Na Introdução ao texto “Análise Terminável e Interminável”, o editor faz um comentário que considero pertinente :
O artigo, como um todo , dá a impressão de pessimismo quanto à eficácia terapêutica da psicanálise. As limitações desta são constantemente acentuadas, e insiste-se nas dificuldades do procedimento enos obstáculos que se interpõem em seu caminho. [1]
Nesse texto, especificamente, Freud trata do tema da cura se interrogando sobre a questão do fim da análise. Questiona a possibilidade de uma transformação. Aponta uma relação paradoxal entre o fim da análise e a sua impossibilidade de ter um fim. Assim, ele questiona a decifração total do inconsciente. Entende, no entanto, que isso não impede uma análise de chegar ao fim, e afirma que esta não ambiciona, busca ou garante a cura.
Em um trecho ele afirma o que poderia ser entendido por cura. Vejamos:
O outro significado do ‘término’[2] de uma análise é muito mais ambicioso. (…). É como se fosse possível, por meio da análise, chegar a um nível de normalidade psíquica absoluta — um nível ademais, em relação ao qual pudéssemos confiar em que seria capaz de permanecer estável, tal como se, talvez, tivéssemos alcançado êxito em solucionar todas as repressões do paciente e em preencher todas as lacunas em sua lembrança.[3]
No trecho acima citado, podemos perceber que a cura, para Freud, estaria relacionada à suspensão de toda repressão. No entanto, ele mesmo se questiona se isso seria possível.
Depois deste sobrevoo supersônico sobre a visão de Freud, quero adentrar ao tema mesmo deste trabalho, ou seja, o artigo de Donald W. Winnicott intitulado: Cura; publicado no livro “Tudo começa em casa”, em 18 de outubro de 1970.
Ao lermos esse artigo, uma questão se impõe de modo preponderante. Qual a concepção de Cura em Winnicott? A concepção de cura em Winnicott representa uma grande virada no pensamento psicanalítico.
Winnicott inaugura esse artigo afiançando que as palavras estão enraizadas etimologicamente e que cada palavra tem uma história própria, cada uma traz um registro no seu tempo próprio. Tal qual a humanidade que finca raízes e estabelece lugares de convivência e de troca, assim é com a palavra. Assim a palavra como o humano são seres do tempo e constroem uma narrativa.
É uma palavra boa em nossa língua: CURA. Se essa palavra pudesse falar, esperar-se-ia que ela contasse uma história. As palavras têm esse tipo de valor: têm raízes etimológicas, têm história. Como os seres humanos, às vezes têm que lutar para estabelecer e manter sua identidade. [4]
De tempos em tempos, elas buscam outros lugares para se alojar e, como os povos nômades, mudam seus significados; às vezes, habitam dois territórios simultaneamente. Cura é um vocábulo do tipo que se inicia com um significado especifico e ocupa, ao longo das eras, dois territórios distintos: o da medicina e o da religiosidade. Quiçá outros territórios?
Em sua gênese, a cura, queria dizer “cuidado”. Temos ainda no âmbito judicial o termo curador, que é aquele que cuida de quem não tem condições de se cuidar de per si.
…a palavra “cura” assinala um denominador comum entre a prática médica e a religiosa. Acredito que “cura”, em suas raízes, signifique cuidado. Mais ou menos por volta de 1700, ela começa a degenerar, passando a designar um tratamento médico…[5]
A saúde antes dessa época era restaurada exorcizando-se os maus espíritos. Winnicott assinala que o tratamento médico sobrepujou o cuidado. Afirma veementemente que os médicos deveriam estar “engajados em tempo integral em uma batalha” para impedir que isso aconteça.
Na palavra do próprio Winnicott:
Pode-se dizer que o clínico cuida, mas precisa conhecer os tratamentos. Em contraste, o especialista se vê com problemas de diagnóstico e erradicação da doença, e tem que se esforçar para lembrar do seguinte: o ato de cuidar também pertence à prática médica.[6]
No trecho que se segue ele brinca com “o cura” e “a cura”, e a meu ver implica aqui o atendimento “espiritual”.
Num desses dois extremos, o médico é um
Assistente social, e na verdade quase que pesca em águas do cura, ou seja, do ministro religioso. No outro extremo, o médico é um técnico, tanto ao fazer o diagnóstico quanto ao aplicar o tratamento[7]
E Winnicott continua dando as dicas sobre o que entende a cura, precisamos pensar em uma “abordagem holística”. E para que isso possa ocorrer é preciso que exista Confiabilidade, pois a doença, a imaturidade e a velhice carregam consigo a dependência e não pode haver dependência se não houver CONFIANÇA.
Como médicos, assistentes sociais e enfermeiros, somos chamados a ser confiáveis de modo humano (e não mecânico), a ter confiabilidade construída sobre nossa atitude geral [8]
Um pouco mais adiante no texto o autor afirma: “Aceitamos a falibilidade como um fato inerente à condição humana” [9] O que implica em dizer que não é exigido perfeição, mas dedicação. E que tudo que se aplica aos médicos, enfermeiros e assistentes sociais também se aplica aos psicanalistas.
Winnicott continua diferenciando o tratamento, considerado como o tratamento profissional e técnico e o cuidado, para o qual ele estabelece seis critérios, os quais vou apenas mencionar.
- Hierarquia ou o que chamo de relações verticalizadas, e que ele considera não existir ou pelo menos não deveria existir na relação do cuidador com seu paciente.
- Dependência que implica em saber quem depende de quem ou quem está doente. O médico, o enfermeiro ou o psicanalista não deveria estabelecer qualquer superioridade, pois um depende do outro. A relação para ele é de horizontalidade
- No papel de cuidadores-curadores
- Não devemos assumir postura moralista, não é nossa função julgar.
- Pressupõe-se que sejamos honestos e trabalhemos com a verdade
- Fazemos o possível para nos tornarmos confiáveis
- Aceitamos os sentimentos do paciente e não obtemos satisfação emocional
- Não seremos cruéis desnecessariamente, sendo que às vezes teremos que ser.
- Faremos um diagnóstico, avaliando as suas necessidades de dependência, se possuem esperança e se tem capacidade de confiar, se possuem capacidade imaginativa e possibilidade de identificações cruzadas.
- Questões relacionadas à gratidão. E o perigo de ficarmos endurecidos com o contato tão próximo com o sofrimento dos pacientes.
- E o último que nos mostra que o cuidar-curar “é uma extensão do conceito de “holding”
E Winnicott afirma:
…quando falo em cura no sentido do “cuidar-curar”, aparece a tendência natural de médicos e enfermeiros a responder às necessidades dos pacientes, mas agora isso é explicitado em termos de saúde: é registrado em termos da dependência natural do indivíduo imaturo, que evoca, nas figuras parentais, a tendência a fornecer condições que incrementem o crescimento individual. Isso não é cura no sentido do tratamento, mas sim no sentido do “cuidar-curar”…[10]
CONCLUSÃO
A título de conclusão farei alguns comentários sobre as questões da cura nos tempos atuais, sempre baseada nas premissas dadas por D.W. Winnicott. E tomarei a liberdade, tendo em vista que o próprio Winnicott fala de aspectos religiosos e cita São Vicente de Paula, de citar um texto do Evangelho de Lucas (9 1-6):
“Tendo reunido os Doze, lhes deu poder e autoridade sobre todos os demônios e lhes concedeu curar as doenças. (Ver também Mt: 10-1)
Enviou-os a proclamar o Reino de Deus e a fazer curas, e lhes disse: “Não leveis nada para a viagem, nem bastão, nem alforje, nem pão, nem dinheiro. Não tenhais duas túnicas cada um. Em qualquer casa onde entrardes, permanecei ali. Daí é que partireis de novo. Se não vos acolherem, deixando essa cidade, sacudi a poeira de vossos pés: será um testemunho contra eles”.
Certamente essa passagem bíblica não se refere a tratar doenças e sim cuidar e curar as almas que estão adoecidas pelos muitos demônios que nos assolam. É propiciar um ambiente facilitador, onde a integração psicossomática possa ocorrer e o self passa se fortalecer.
Hoje, os dois polos da palavra ‘cura’ se desconectaram um do outro. O curar-cuidar fica dissociado do tratamento. Permanece apenas a cura medica enquanto tratamento, erradica-se a doença pelo uso de medicalização. A doença fica confundida com o sintoma. O médico passa, pouco a pouco, a ser um técnico que vem rapidamente perdendo contato com o outro extremo: aquele que cuida. Eu não estou generalizando e dizendo que todos os médicos são assim. É apenas uma avaliação histórica do nosso tempo e em nada há um julgamento do uso de medicação ou trabalho do médico, mas sim da perda do contato com o todo.
Curar, cuidar, segurar são pontos que se tecem formando um bordado. O curar/cuidado é, do meu ponto de vista e de Winnicott, mais relevante que o curar/tratamento. Todos nós, ou pelo menos muitos de nós, sabemos que beijinho de mãe cura.
BIBLIOGRAFIA
FREUD, Sigmund – Análise terminável e Interminável. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud. Vol. XXIII Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969.
FREUD, Sigmund – Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente. Vol. I, Rio de Janeiro: Imago, 2004.
WINNICOTT, D. W.-Tudo começa em casa. São Paulo: Ed. Martins Fontes. 1999.
[1] FREUD, Sigmund- Análise Terminável e Interminável. In: Obras Completas p. 242.
[2] Estou lendo “término’ de análise como indicativo de cura.
[3] FREUD, op.cit p.251
[4] WNNICOTT, D. W. – A cura. P. 105
[5] WINNICOTT, Op. cit. – p. 105
[6] Op. cit.- p. 106
[7] Op. Cit.- p.106
[8] Op. cit. P. 106
[9] Op. cit p. 107
[10] Op. Cit. P.113