Blog

08/10/2024

A Cura. A arte também cura.

por: Cris Gomes

Uma das maiores preocupações do ser humano nos últimos 2500 anos se voltou para a busca da cura da alma e do corpo. Podemos encontrar o termo latino cura sui como uma das primeiras referências para o cuidar de si. Ao longo da história, várias buscas e o desenvolvimento de terapias foram realizadas.

Vou apenas dar algumas pinceladas sobre a questão da Cura em Freud sem me aprofundar. O que me interessa nesse escrito é discutir o artigo de Winnicott sobre A Cura. Destrinchá-lo com garfo e faca de maneira que se torne palatável e possa ser apreciado em seus detalhes mais insignificantes. Gosto do método de leitura usado por Thomas Ogden, e vou tentar me apropriar dele, ao meu modo.

Na Psicanálise fundada por Freud, a teoria  se assenta no contato com a neurose, no sujeito em luta com conflitos pulsionais e na batalha para manter o reprimido, reprimido. Curar para Freud implica em abstinência, em aceitação e confrontação com a realidade estabelecida, uma realidade a priori.

É interessante observar e salientar que as questões relacionadas à cura, às transformações possibilitadas pela análise, são problemas que permeiam a obra de Freud desde o “Projeto” de 1896, perpassando por vários de seus artigos.

Na Introdução ao texto “Análise Terminável e Interminável”, o editor faz um comentário que considero pertinente :

 

O artigo, como um todo , dá a impressão de pessimismo quanto à eficácia terapêutica da psicanálise. As limitações desta são constantemente acentuadas, e insiste-se nas dificuldades do procedimento enos obstáculos que se interpõem em seu caminho. [1]

 

Nesse texto, especificamente, Freud trata do tema da cura se interrogando sobre a questão do fim da análise. Questiona a possibilidade de uma transformação. Aponta uma relação paradoxal entre o fim da análise e a sua impossibilidade de ter um fim. Assim, ele questiona a decifração total do inconsciente. Entende, no entanto, que isso não impede uma análise de chegar ao fim, e afirma que esta não ambiciona, busca ou garante a cura.

Em um trecho ele afirma o que poderia ser entendido por cura. Vejamos:

 

O outro significado do ‘término’[2] de uma análise é muito mais ambicioso. (…). É como se fosse possível, por meio da análise, chegar a um nível de normalidade psíquica absoluta — um nível ademais, em relação ao qual pudéssemos confiar em que seria capaz de permanecer estável, tal como se, talvez, tivéssemos alcançado êxito em solucionar todas as repressões do paciente e em preencher todas as lacunas em sua lembrança.[3]

 

No trecho acima citado, podemos perceber que a cura, para Freud, estaria relacionada à suspensão de toda repressão. No entanto, ele mesmo se questiona se isso seria possível.

Depois deste sobrevoo supersônico sobre a visão de Freud, quero adentrar ao tema mesmo deste trabalho, ou seja, o   artigo de Donald W. Winnicott intitulado: Cura; publicado   no livro “Tudo começa em casa”, em 18 de outubro de 1970.

 

Ao lermos esse artigo, uma questão se impõe de modo preponderante. Qual a concepção de Cura em Winnicott? A concepção de cura em Winnicott representa uma grande virada no pensamento psicanalítico.

 

Winnicott inaugura esse artigo   afiançando que as palavras estão enraizadas etimologicamente e que cada palavra tem uma história própria, cada uma traz um registro no seu tempo próprio. Tal qual a humanidade que finca raízes e estabelece lugares de convivência e de troca, assim é com a palavra. Assim a palavra como o humano são seres do tempo e constroem uma narrativa.

 

É uma palavra boa em nossa língua: CURA. Se essa palavra pudesse falar, esperar-se-ia que ela contasse uma história. As palavras têm esse tipo de valor: têm raízes etimológicas, têm história. Como os seres humanos, às vezes têm que lutar para estabelecer e manter sua identidade. [4]

 

De tempos em tempos, elas buscam outros lugares para se alojar e, como os povos nômades, mudam seus significados; às vezes, habitam dois territórios simultaneamente.  Cura é um vocábulo do tipo que se inicia com um significado especifico e ocupa, ao longo das eras, dois territórios distintos: o da medicina e o da religiosidade. Quiçá outros territórios?

Em sua gênese, a cura, queria dizer “cuidado”. Temos ainda no âmbito judicial o termo curador, que é aquele que cuida de quem não tem condições de se cuidar de per si.

 

…a palavra “cura” assinala um denominador comum entre a prática médica e a religiosa. Acredito que “cura”, em suas raízes, signifique cuidado. Mais ou menos por volta de 1700, ela começa a degenerar, passando a designar um tratamento médico…[5]

 

A saúde antes dessa época era restaurada exorcizando-se os maus espíritos. Winnicott assinala que o tratamento médico sobrepujou o cuidado. Afirma veementemente que os médicos deveriam estar “engajados em tempo integral em uma batalha” para impedir que isso aconteça.

Na palavra do próprio Winnicott:

 

Pode-se dizer que o clínico cuida, mas precisa conhecer os tratamentos. Em contraste, o especialista se vê com problemas de diagnóstico e erradicação da doença, e tem que se esforçar para lembrar do seguinte: o ato de cuidar também pertence à prática médica.[6]

 

No trecho que se segue ele brinca com “o cura” e “a cura”, e a meu ver implica aqui o atendimento “espiritual”.

 

Num desses dois extremos, o médico é um

Assistente social, e na verdade quase que pesca em águas do cura, ou seja, do ministro religioso. No outro extremo, o médico é um técnico, tanto ao fazer o diagnóstico quanto ao aplicar o tratamento[7]

 

E Winnicott continua dando as dicas sobre o que entende a cura, precisamos pensar em uma “abordagem holística”. E para que isso possa ocorrer é preciso que exista Confiabilidade, pois a doença, a imaturidade e a velhice carregam consigo a dependência e não pode haver dependência se não houver CONFIANÇA.

 

Como médicos, assistentes sociais e enfermeiros, somos chamados a ser confiáveis de modo humano (e não mecânico), a ter confiabilidade construída sobre nossa atitude geral [8]

 

Um pouco mais adiante no texto o autor afirma: “Aceitamos a falibilidade como um fato inerente à condição humana” [9]  O que implica em dizer que não é exigido perfeição, mas dedicação. E que tudo que se aplica aos médicos, enfermeiros e assistentes sociais também se aplica aos psicanalistas.

Winnicott continua diferenciando o tratamento, considerado como o tratamento profissional e técnico e o cuidado, para o qual ele estabelece seis critérios, os quais vou apenas mencionar.

  1. Hierarquia ou o que chamo de relações verticalizadas, e que ele considera não existir ou pelo menos não deveria existir na relação do cuidador com seu paciente.
  2. Dependência que implica em saber quem depende de quem ou quem está doente. O médico, o enfermeiro ou o psicanalista não deveria estabelecer qualquer superioridade, pois um depende do outro. A relação para ele é de horizontalidade

 

  1. No papel de cuidadores-curadores
  2. Não devemos assumir postura moralista, não é nossa função julgar.
  3. Pressupõe-se que sejamos honestos e trabalhemos com a verdade
  4. Fazemos o possível para nos tornarmos confiáveis
  5. Aceitamos os sentimentos do paciente e não obtemos satisfação emocional
  6. Não seremos cruéis desnecessariamente, sendo que às vezes teremos que ser.

 

  1. Faremos um diagnóstico, avaliando as suas necessidades de dependência, se possuem esperança e se tem capacidade de confiar, se possuem capacidade imaginativa e possibilidade de identificações cruzadas.

 

  1. Questões relacionadas à gratidão. E o perigo de ficarmos endurecidos com o contato tão próximo com o sofrimento dos pacientes.

 

  1. E o último que nos mostra que o cuidar-curar “é uma extensão do conceito de “holding”

 

E Winnicott afirma:

…quando falo em cura no sentido do “cuidar-curar”, aparece a tendência natural de médicos e enfermeiros a responder às necessidades dos pacientes, mas agora isso é explicitado em termos de saúde: é registrado em termos da dependência natural do indivíduo imaturo, que evoca, nas figuras parentais, a tendência a fornecer condições que incrementem o crescimento individual. Isso não é cura no sentido do tratamento, mas sim no sentido do “cuidar-curar”…[10]

 

 

CONCLUSÃO

A título de conclusão farei alguns comentários sobre as questões da cura nos tempos atuais, sempre baseada nas premissas dadas por D.W. Winnicott. E tomarei a liberdade, tendo em vista que o próprio Winnicott fala de aspectos religiosos e cita São Vicente de Paula, de citar um texto do Evangelho de Lucas (9 1-6):

 

“Tendo reunido os Doze, lhes deu poder e autoridade sobre todos os demônios e lhes concedeu curar as doenças. (Ver também Mt: 10-1)

Enviou-os a proclamar o Reino de Deus e a fazer curas, e lhes disse: “Não leveis nada para a viagem, nem bastão, nem alforje, nem pão, nem dinheiro. Não tenhais duas túnicas cada um. Em qualquer casa onde entrardes, permanecei ali. Daí é que partireis de novo. Se não vos acolherem, deixando essa cidade, sacudi a poeira de vossos pés: será um testemunho contra eles”.

 

Certamente essa passagem bíblica não se refere a tratar doenças e sim cuidar e curar as almas que estão adoecidas pelos muitos demônios que nos assolam. É propiciar um ambiente facilitador, onde a integração psicossomática possa ocorrer e o self passa se fortalecer.

Hoje, os dois polos da palavra ‘cura’ se desconectaram um do outro. O curar-cuidar fica dissociado do tratamento.  Permanece apenas a cura medica enquanto tratamento, erradica-se a doença pelo uso de medicalização. A doença fica confundida com o sintoma. O médico passa, pouco a pouco, a ser um técnico que vem rapidamente perdendo contato com o outro extremo: aquele que cuida. Eu não estou generalizando e dizendo que todos os médicos são assim. É apenas uma avaliação histórica do nosso tempo e em nada há um julgamento do uso de medicação ou trabalho do médico, mas sim da perda do contato com o todo.

Curar, cuidar, segurar são pontos que se tecem formando um bordado. O curar/cuidado é, do meu ponto de vista e de Winnicott, mais relevante que o curar/tratamento. Todos nós, ou pelo menos muitos de nós, sabemos que beijinho de mãe cura.

 

BIBLIOGRAFIA

FREUD, Sigmund – Análise terminável e Interminável. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud. Vol. XXIII Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969.
FREUD, Sigmund – Escritos sobre a Psicologia do Inconsciente. Vol. I, Rio de Janeiro: Imago, 2004.
WINNICOTT, D. W.-Tudo começa em casa. São Paulo: Ed. Martins Fontes. 1999.

 

 

[1] FREUD, Sigmund- Análise Terminável e Interminável. In: Obras Completas p. 242.
[2] Estou lendo “término’ de análise como indicativo de cura.
[3] FREUD, op.cit p.251
[4] WNNICOTT, D. W. – A cura. P. 105
[5] WINNICOTT, Op.  cit. – p. 105
[6] Op. cit.-  p. 106
[7] Op. Cit.- p.106
[8] Op. cit. P. 106
[9] Op. cit p. 107
[10] Op. Cit. P.113