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11/05/2024

Consultas Terapêuticas modificadas e adaptadas à situação de Pandemia: O acolhimento em tempos de solidão

por: Afranio de Matos Ferreira

Consultas Terapêuticas modificadas e adaptadas à situação de Pandemia: O acolhimento em tempos de solidão
Afrânio de Matos Ferreira

Este texto foi elaborado pela equipe de coordenação do Projeto Consultas Terapêuticas do EPW-SP, composto por Afrânio de Matos Ferreira, Ângela May, Ana Cristina Bueno e Monica Lazzarini Valente. Todos os treze participantes do Projeto se envolveram e colaboraram neste trabalho. Agradeço profundamente a cada um deles. Este trabalho foi apresentado no XIII Encontro Brasileiro de 2021 sobre o Pensamento de Winnicott em Fortaleza, CE e o texto integral está no livro “Gesto Espontâneo – Em 90 Trabalhos”.

O nascimento do Projeto
Magaly Marconatto Callia e eu, em 1999 fundamos o Espaço Potencial Winnicott em São Paulo. Este grupo de estudos e pesquisa foi inspirado nos seminários que o Outeiral nos oferecia mensalmente. A diferença do EPW-SP consistia em ser um grupo horizontal, composto pelos participantes dos seminários com Outeiral e aberto à comunidade de psicanalistas que já tinham uma trajetória nos estudos da obra de Winnicott. Este grupo por ser aberto, já completa seus 21 anos de atividades, com mudanças e entradas de novos membros.
Por ocasião da Pandemia o grupo ficou imerso na angústia compartilhada com toda a humanidade. Ficamos, como todos, impedidos ao encontro presencial com nossos pacientes, com os nossos colegas, amigos e parentes.
Continuamos nossos encontros on line e diante a uma realidade tão avassaladora, sem negar a nossa vulnerabilidade, criamos o nosso Projeto de Consultas Terapêuticas Modificadas e Adaptadas à Situação de Pandemia. Desta forma, com empatia e compaixão com os profissionais que atuavam na linha de frente, tentamos encontrar uma forma de engajar na dura realidade que se apresentava oferecendo nossa força de trabalho, atenuando nossa angústia, rompendo com a imobilidade exigida pelo confinamento e isolamento.
Um grupo de treze analistas do EPW, apaixonados pela clínica e com muita disponibilidade se engajaram neste projeto inspirador e desafiador. Fomos construindo o Projeto na modalidade on-line, inspiradas nos trabalhos de Winnicott, mas fazendo adaptações a partir das nossas experiências, estudos, atendimentos a distancia na situação de Pandemia. Não deixamos de levar em conta, ser um trabalho que exigia de nós um cuidado especial com o nosso grupo, que estava imerso na mesma situação e momento histórico, social e sanitário de nossos pacientes.
No início, nosso Projeto ofereceu suporte psicológico aos profissionais da área da Saúde. Esta escolha não se deu por acaso, mas por empatia e identificação com o sofrimento deste grupo, que estava naturalmente vulnerável, por estar na linha de frente do enfrentamento da doença, na época, ainda muito desconhecida.
Quando iniciamos os atendimentos estávamos no pico da crise, aquele momento avassalador que todos se lembram, onde o numero de infectados e de mortos crescia geometricamente. Havia dúvidas, informações contraditórias, medicações ineficazes e condução precária por parte dos órgãos responsáveis. O sofrimento por um lado, e o negacionismo (seja por uma posição política ou por defesa psíquica), por uma parcela da população, nos apontava para a necessidade de um trabalho que pudesse acolher a angústia, reconhecer a necessidade de cuidar de si mesmo e dos outros. Ajudasse a processar, diluir e dar uma nova direção ao sofrimento destas pessoas e nossos também. De alguma forma cuidamos criativamente, de nossa saúde mental.
Após alguns meses de trabalho, percebemos que a demanda dos profissionais da área da Saúde não foi tão grande como esperávamos. Muitos outros projetos surgiram direcionados a estes profissionais. No entanto, a procura de atendimento por profissionais da Saúde foi diminuindo. Fomos entendendo que estes profissionais estavam imersos num furacão e não havia espaço psíquico para Consultas ou ainda, queriam tentar se desligar das duras experiências vividas nos seu local de trabalho. Ouvimos relatos que eles chegavam em casa exauridos, só querendo tomar banho e dormir, evitavam pensar e reviver o dia a dia de dor e de medo. Precisavam “desligar para ter energia para a jornada do dia seguinte”.

Novo direcionamento do Projeto
Mas nosso trabalho não parou por aí. Por efeito da divulgação e encaminhamento feito por diversos profissionais, foram surgindo pedidos de consulta da população, como um todo, atingida de alguma forma pela Pandemia. Fomos acolhendo esses pedidos e abrimos espaços para atender essa nova demanda. Foi um passo muito importante, encontramos uma população desassistida, desempregada, carente, com lutos não elaborados, vivências de pânico, desespero, ameaças de suicídio, etc. Foi nos apresentando um Brasil sofrido, com muita dor de diversas ordens. Atualmente temos recebido pedidos de todas as regiões do Brasil e também de brasileiros residentes fora do país.
É comum em nossos atendimentos, vivenciarmos situações de identificação com nossos pacientes. Nossos mundos, por vezes, estão superportos. Para poder suportar tanta dor e trabalhar nossa contratransferência, realizamos semanalmente supervisões horizontais, onde discutimos o atendimento, trabalhamos as dificuldades que se apresentam, apoiamos e somos acolhidos por nossos parceiros em nossas dúvidas e angústias. Desta forma, damos continuidade ao atendimento clinico e à pesquisa psicanalítica.

A dinâmica do Projeto

“Adoro falar sobre essas coisas que ilustram o uso dos rabiscos através da referência a exemplos de consultas terapêuticas, mas, ao mesmo tempo, como espero que perceba, reluto muito em colocar isso de maneira definitiva no papel. Eu preferiria que cada profissional do ramo desenvolvesse seu próprio método, assim como eu desenvolvi o meu”
Winnicott, Carta 116 – Para L. Joseph Stone
Falaremos de forma sintética como Donald W. Winnicott trabalhou suas Consultas Terapêuticas, e posteriormente relataremos a construção e enquadre do nosso Projeto.
As Consultas Terapêuticas feitas por Winnicott tem suas raízes na década de 40 e publicado, muitos anos depois, no Livro Consultas Terapêuticas em Psiquiatria Infantil. No prólogo deste livro Winnicott diz o seguinte:
“Este livro se refere à aplicação da psicanálise na psiquiatria infantil”, e brincando com as palavras continua: “A técnica para esse trabalho dificilmente pode ser chamada de técnica”. Winnicott à sua maneira, firma e nega, numa brincadeira de sim e não, sempre tendo em mente as questões paradoxais. Logo de início nos coloca esse desafio: ser ou não ser … uma técnica? E para além disso: ser ou não ser … Psicanálise.
Mais adiante, Winnicott coloca que as Consultas Terapêuticas não é “Psicanálise strictu sensu”. As Consultas ocorrem em um número de sessões limitado e, segundo o próprio autor, insuficiente para o estabelecimento da transferência Também o tempo de cada encontro é variável, podendo ser longo ou curto, dependendo do que cada caso requer.
Em vários momentos de sua obra, Winnicott demonstra sua preocupação com o social e com as condições socioeconômicas dos seus pacientes. E suas preocupações não foram apenas teóricas; buscou desenvolver práticas que pudessem atender à demanda de pessoas menos favorecidas social e economicamente.
As Consultas Terapêuticas apresentam em si mesmo um valor diagnóstico. Winnicott ressalta em vários momentos a importância da avaliação diagnóstica para decidir que tipo de tratamento será encaminhado o paciente. Ele não fala de um diagnóstico fechado e definitivo, mas de um processo diagnóstico sempre em aberto, norteador do processo terapêutico, em qualquer modalidade que isso esteja acontecendo.
Algumas palavras expressam a qualidade do atendimento em Consultas Terapêuticas, tais como: flexibilidade, singularidade e uma relação não interpretativa.
A flexibilidade refere-se principalmente ao método psicanalítico e à própria flexibilidade do analista. Não esqueçamos que rigidez para Winnicott implica em adoecimento. A flexibilidade carrega um aspecto fundamental que impõe um outro ritmo às Consultas Terapêuticas. Citando o próprio autor: “há um intercâmbio muito mais livre entre o terapeuta e o paciente do que num tratamento psicanalítico puro”.
Winnicott afirma que a singularidade do paciente e do analista, bem como a singularidade própria de cada relação, deve ser preservada. Enquanto analistas, ao mergulharmos nesse mundo das Consultas Terapêuticas, devemos levar conosco a nossa bagagem teórica, experiência clínica e da própria vida. Winnicott advoga que as C.T. devem ser conduzidas por analistas que fizeram sua análise pessoal e no seu trabalho como analista já realizaram tratamentos completos, e conhecem desta forma, uma “experiência completa”.
Apesar de Winnicott afirmar que Consultas Terapêuticas não é Psicanálise, ele afirma que a base das mesmas é a própria Psicanálise. Neste sentido podemos pensar que Consultas Terapêuticas seja uma Psicanálise Aplicada e Ampliada.
Winnicott observou que com certa frequência algumas crianças quando vinham às consultas relatavam que tinham sonhado com ele na noite anterior. Isto revelava o preparo imaginativo delas em relação ao psiquiatra que ia recebê-las. Winnicott percebeu também, que ele próprio se ajustava a noção preconcebida de cada criança, e se colocava na condição do objeto subjetivo da criança. Ele percebia que estar neste papel de objeto subjetivo ajudava substancialmente o trabalho nas Consultas Terapêuticas, mas este estado não durava muito tempo, portanto as consultas não deveriam prolongar por muitas sessões.
Winnicott elencou uma série de características que podemos considerar “suficientemente boas” para estar habilitado em atender em CT. De forma sucinta elencamos: Capacidade de identificar-se com o paciente sem perder a própria identidade. Capacidade de conter os conflitos do paciente e simultaneamente, esperar que o próprio paciente possa dar encaminhamento as suas questões. Não procurar ansiosamente pela Cura. Manter a confiança profissional a despeito das dificuldades da vida. Isto é, inspirar confiança e consistência por meio de sua atitude profissional. Manter flexibilidade no setting e nas atitudes.

C.T. modificadas e Adaptadas à situação de Pandemia, o nosso trabalho singular

Nosso trabalho está sendo baseado na contribuição de Winnicott que foi o pioneiro e nosso inspirador na nossa clinica e do nosso Espaço Potencial. Sem dúvidas, estamos fazendo nossas alterações e contribuições a partir da experiência destes treze profissionais, nossa singularidade, nosso momento social e político, a vivência de uma Pandemia e a condição contemporânea de ser um trabalho on line.
O número de sessões
As C.T. feitas por Winnicott foram feitas em diversas sessões, muitas vezes permeadas por atendimentos aos pais de seus pequenos pacientes, Winnicott recomenda que a Consulta Terapêutica seja feita em uma primeira consulta ou entrevistas reduplicadas, para que o paciente possa estar ainda com o terapeuta “subjetivo”, o que facilita a expressão de suas necessidades, conflitos e angústias.
Nós optamos por oferecer cinco encontros. Avaliamos que nestas condições atuais, uma a três sessões seria insuficiente para nós e para nossos pacientes, logo, talvez, cinco sessões fosse número razoável dentro do dispositivo on line, gratuito, que nascia, com a característica da urgência e do grande sofrimento ocasionado pela Pandemia. Apesar do numero limitado de sessões, esperávamos que esse encontro se tornasse significativo e profundo.
A nossa experiência nestes dois anos de atividade comprovou nossa hipótese de potência e eficácia nesta modalidade de atendimento. Nossos pacientes puderam experimentar estar uma relação acolhedora e com uma escuta atenta, podendo elaborar as questões centrais que os atormentavam e dar-lhes um novo destino ou retomar o caminho da sua linha de vida.
Temos experimentado viver situações totalmente novas e absolutamente surpreendentes, mantendo a humildade e assim conseguindo oferecer uma relação de acolhimento, uma hospedagem, um espaço de escuta atenta e ética aos nossos pacientes.
Nossa experiência e continua avaliação do trabalho tem nos norteado nosso trabalho. Temos preciosas contribuições de outros analistas que nos ajudam a pensar, confirmar ou refazer alguns passos do Projeto. Gilberto Safra, por exemplo, referindo ao trabalho do psicanalista assinala que “o trabalho cotidiano do psicanalista é proporcionar um espaço potencial que favoreça a transferência e os fenômenos transicionais. Neste sentido, o analista se ocupa em oferecer um espaço e uma escuta atenta e ética, uma hospitalidade encarnada”.
De fato, vamos fazendo como Winnicott fazia, colhendo daqui e dali experimentos e teorias que nos oferecem aqueles que nos precedem e que sintonizam com o nosso trabalho. Desta forma, podemos lembrar-nos do Jogo da Espátula de Winnicott, da adaptação às necessidades.
Nós nos oferecemos para acolher, reconhecer e adaptar as necessidades atuais cada um dos pacientes e estes nos presenteiam com a sua presença e entrega durante os atendimentos. Juntos, procuramos entender como estes sujeitos em sofrimento encontrarão o seu caminho de volta à vida, podendo nos dispensar posteriormente. Deixando a hospedagem, onde foi acolhido e alimentado.
Para Roussillon, a escuta como metáfora significa estar atento a todos os sinais, as mensagens verbais e não verbais. “A nós, psicanalistas, compete escutar e compreender as manifestações do sujeito que tenta nos comunicar quais são as suas necessidades, quais representações ele pode fazer para si daquilo de que precisa e daquilo que pode esperar de nós. Aqui, mais do que noutro lugar- e isso, mesmo com sujeitos em grande desamparo -, é o sujeito que guia a nossa intervenção, ainda que não possa fazê-lo de forma deliberada e manifesta”.
Sobre o encontro on line
De repente o on-line virou regra, não exceção, tornou-se um novo enquadre e neste cenário que nasceu nosso dispositivo de C.T. Estamos diante de telas, em nossas casas, nos nossos consultórios, nas casas de praia, ou em qualquer outro lugar. Somos convidados a entrar nas casas de nossos pacientes, nos seus quartos, seus carros, suas lages. Visitamos uma intimidade que outrora não fazia parte da relação com nossos clientes. Cuidamos para manter o setting terapêutico, mas não temos o menor controle sobre ele. Somos recorrentemente surpreendidos na maior parte dos atendimentos. Esta nova forma, a distancia, exige de nós flexibilidade e criatividade para suportar o inédito e conseguir ter a nossa intimidade razoavelmente preservada, pois somos também visitados e revelamos a nossa intimidade.
Temos percebido que não há prejuízos nos encontros on-line, por não ser um encontro com presença física. Em alguns casos, o fato de ser a distancia facilita a expressão de muitas questões que, para o paciente, seria difícil trazê-las no presencial. Outra vantagem é a possibilidade de atender pessoas de lugares inusitados. Temos vivenciado relações com intensidade de presença e intimidade, onde nós e nossos clientes somos tomados por sensações, sentimentos e emoções muito profundas.

Sobre a gratuidade
A nossa postura sobre a gratuidade neste trabalho se deu por um posicionamento humano, político e social. Doar nosso tempo de forma devotada em tempos de solidão. Compartilhar a solidão oferecendo uma hospedagem sem custo. A resposta tem vindo em forma de gratidão.
No momento estamos acolhendo muitos médicos, enfermeiros, psicólogos, domésticas, manicures, desempregados, famílias, adolescentes, que nos chegam por mais diferentes meios e pelo efeito multiplicador da internet. Supomos que, a gratuidade e a relação à distância, permitiu que as pessoas tivessem coragem de experimentar um atendimento psicológico que há muito tempo precisavam e que a Pandemia permitiu que eles procurassem aquilo que necessitam. Parafraseando Winnicott, da mesma forma que o bebê que cria o seio, “encontra aquilo que procura”, e acolhimento à solidão aí se dá.